sexta-feira, 14 de julho de 2017

Entrevista com ANDRÉ DAHMER - Por RAFAEL SPACA - REVISTA BRAVO

“Arte não serve para dar status”
Na série com grandes quadrinistas brasileiros, Rafael Spaca entrevista André Dahmer. “Sou uma pessoa bem-humorada, mas não um humorista”



Por Rafael Spaca
Sua incursão às artes não é nada romântica. Você começou a desenhar ainda criança, uma das maneiras que seus pais encontraram para tentar melhorar seu problema de déficit de atenção e hiperatividade. Você dava tanto trabalho assim pra te apresentarem o desenho?
Eu era aquele menino que queimava e quebrava brinquedos, que não conseguia ficar sentado na cadeira em sala de aula. Tive muitas dificuldades de convivência na escola, até encontrar o desenho na oficina de Maria Teresa Vieira. Essa senhora, uma alagoana, foi muito importante na minha formação. Eu viria a retribuir tudo que ela me deu 20 anos mais tarde, lecionando Modelo Vivo na mesma instituição. Uma maneira de devolver os valores e ensinamentos que recebi: tratar do fazer artístico com amor e atenção; cuidar do dom para nunca se perder no caminho; respeitar a Arte como forma de existência menos conturbada. Devo muito a ela.

Você era péssimo aluno, repetiu de ano duas vezes. O que acontece que muitos, como você, lá na frente conseguem sucesso mesmo não tendo sucesso na escola?
Sucesso na vida, para mim, é falecer dormindo. Todo resto é bobagem. A carreira me deu possibilidade de sobreviver e ter uma família, é bem verdade. Porém, a Arte ultrapassa a questão do dinheiro. É uma maneira de sobreviver ao mundo interior, antes mesmo do mundo exterior. A Arte é um caminho para todos, diferentemente do que pensa o senso comum. O que falta é uma cultura de Arte em uma sociedade voltada para a técnica e “resultados”.

E por que esses péssimos alunos vão sempre pra área de humanas e não de exatas?
Não sei se isso é verdade. Sei que a maioria dos “alunos-problemas” não são entendidos pelas instituições de ensino tradicionais. Entendidos em suas demandas individuais, porque somos diferentes uns dos outros. Não é possível lecionar para 30, 40 crianças usando um padrão. É preciso respeitar e entender as nuances de personalidade de cada um. Ensinar é reconhecer as diferenças de cada um.



Pra quem foi desenganado, ter um quadrinho como conteúdo de referência para prova do Enem (em 2011), é uma das ironias da vida, não acha?
É, pode ser. Fico feliz que meu trabalho seja visto por adolescentes que nem eram nascidos quando comecei a trabalhar com quadrinhos. É um indício de que ainda estou fazendo algo relevante e atual. De qualquer forma, não guardo qualquer mágoa. Tudo que passei foi importante na minha formação como artista. Os erros são tão importantes quanto os acertos, na medida em que ambos ensinam e apontam novos caminhos. O erro ensina muito, não deveria ser desmerecido ou amaldiçoado.

Afinal das contas, depois que começou a desenhar, melhorou da hiperatividade e déficit de atenção?
Não tomo remédios, não havia drogas desse tipo quando eu era criança. Tenho alguma dificuldade de concentração, penso muitas coisas ao mesmo tempo. Porém, aprendi a “domesticar” o problema. Não me sinto menos capacitado para fazer nenhuma tarefa cotidiana, mesmo as que exigem muita concentração. Jogo xadrez desde os 15 anos, uma prova de que posso fazer tarefas que exigem muita concentração.

Na Belas Artes, na UFRJ, você não se adaptou a todas aquelas questões teóricas. Era muito rigoroso lá? O artista tem que ser livre e não enquadrado, não acha?
Acho que os fundamentos da técnica são importantes para qualquer artista, mas não são as únicas coisas que importam na formação. Grandes artistas foram recusados nas escolas de Belas Artes: Picasso e Van Gogh, apenas para citar dois exemplos. A questão é que a Belas Artes é engessada demais, muito voltada para o rigor técnico de representação. É provável que esta tenha “estragado” muitos meninos por trabalhar mais o rigor técnico do que a intuição, por exemplo.



Você louva não ter nenhuma referência, inspiração ou mestre. Isso te fez ser original?
Claro que tive mestres no começo, mas logo os abandonei. Não é bom cultivar ídolos em campo algum do conhecimento. Achar o próprio e original caminho é a única coisa que importa. Todo o resto é cópia ou reverência, o que não nos faz artistas. É preciso, em algum momento do caminho, fazer o que chamo de “abandono do mestre”.

Ziraldo te definiu como “cartunista machadiano”. Sabe o que ele quis dizer com isso?
Acho que ele se referia à forma de narrativa do meu trabalho. Sou muito agradecido a ele. Ziraldo me deu o primeiro emprego em mídia impressa, quando foi editor do Caderno B do extinto Jornal do Brasil. Eu tinha apenas 25 anos, nunca imaginei que trabalharia com quadrinhos por tanto tempo, fazendo dele minha profissão.

Não é preciso ler quadrinhos, conhecer pintura ou fotografia, para se tornar um desenhista?
É preciso, claro. Conhecimento nunca é demais. O problema é ficar preso às linguagens e caminhos já traçados anteriormente. O artista precisa inventar, não copiar. E invenção pressupõe liberdade e coragem para caminhar sozinho, sem guia. Depois de conhecer o que os outros fizeram antes, é preciso estar pronto para inventar o que não foi feito ainda.



Pra que serve a técnica?
A técnica é uma amiga do artista. Ela ajuda enquanto não faz do artista um mero repetidor. É preciso atenção com isso; a técnica pode manter um jovem artista preso a um sistema duro de pura representação e repetição, arrastando-o para longe do universo de invenção. Não existe fazer artístico seguro. Se você está no conforto da segurança, não está fazendo Arte.

Suas tirinhas, charges, cartuns sempre apresentam críticas com sarcasmo, escárnio, humor negro corrosivo e até autodepreciativo. Considera-se uma pessoa bem-humorada ou todo o seu trabalho reflete quem é você?
Me considero uma pessoa bem-humorada, mas não sou um humorista. Sou um cartunista, o que é muito diferente. Não sou uma pessoa engraçada, vamos dizer assim. Também não trabalho simplesmente para divertir pessoas: minha abordagem é outra, diferente da do palhaço de circo ou do humorista de auditório. Minha intenção nem sempre é a de provocar risos com o meu trabalho.

O alienado é sempre mais feliz do que o bem informado?
Talvez o alienado seja mais feliz, mas é uma forma de conforto pequena. A gente está no mundo para viver de verdade, por mais triste ou sem sentido que a verdade possa ser. A vida é muito curta para nos perdermos com religião ou crenças pouco prováveis. Acho que a existência é mesmo algo finito e sem sentido, infelizmente. Quanto antes nós aceitamos isso, mais preciosa se torna a vida.



Suas tirinhas já incomodaram muita gente, tanto é que chegou a ser ameaçado de agressão física por causa de algumas delas. Isso não te assusta?
Não, não me assusta pessoalmente. Me assusta a violência acima do debate de ideias. Isso sim me causa espanto. A violência é inerente à condição humana, mas também acho que somos capazes de coisas maiores. É só questão de tempo e vontade.

Hoje o receio de todo artista, além destas ameaças, é a cultura do processo judicial. Acredita que ele representa, de certa maneira, o que foi o censor de ontem?
Em alguns casos, é uma forma de cerceamento da liberdade de expressão, sim. Porém, se você tem medo de processos ao fazer cartuns, certamente está na área errada.

O politicamente correto vai matar a arte? Como encara esse patrulhamento de todas as categorias e segmentos da sociedade que se incomodam com quase tudo que se faz e é publicado?
Acredito que boa parte do mau humor com certas piadas tem algum fundamento. Não é possível que, em nome do humor, você ataque grupos historicamente oprimidos, por exemplo. Muito pelo contrário: acho que o humor pode e deve servir aos oprimidos e marginalizados. Para mim, o grande mérito do humor não é o riso, mas a denúncia da realidade.



Acha que daqui a pouco vai precisar desenhar tendo um advogado ou seu lado para saber se pode ou não fazer referência a um determinado assunto?
Não acho. Advogados ganham dinheiro com a discórdia. Meu trabalho não é feito para humilhar ninguém.

Você se diz uma pessoa solitária. Isso é bom ou ruim? O trabalho, sendo solitário, rende mais?
Não se pode fazer nada sem a solidão, dizia Pablo Picasso. É muito verdadeiro, se você entende que a natureza do fazer artístico é o mundo interior. A solidão segue produzindo romances, quadros e peças de teatro. Isso é bom, porque os solitários são donos de um mundo interior muito vasto, o que pode causar grande sofrimento. Para essa gente, Arte é remédio.

Suas tiras saem na internet e no jornal. Qual é a sensação de vê-las publicadas nesses dois meios de comunicação?
Acho que estamos em uma fase transitória, mas o jornal impresso continuará a existir por muito tempo. Talvez com outro formato, tiragem e função. Mas, como meio de informação, não acabará tão cedo. Fico feliz que meu trabalho possa ser lido em jornal. É um público de mais idade, que nunca imaginei ter como leitor.



O jornal, por ser canônico, dá outro tipo de chancela quando é publicado um trabalho seu?
Deve dar, mas não estou atrás de chancela de ninguém. Se você precisa de reconhecimento do meio para ser artista, há algo errado aí. A Arte existe para libertar, não para dar status.

E quando sai em livro, que importância tem isso pra você?
Isso é diferente, porque fica um registro mais cuidadoso do caminho que fiz. As tiras se perdem na velocidade da rede e do jornal. O livro é uma maneira de compilar o material, de organizar seu trabalho para um melhor entendimento futuro.

Você nunca se acomodou com o sucesso. Mata personagens, termina séries e se renova constantemente. Isso é insegurança ou inquietude?
Não é uma fórmula, é como meu trabalho se desloca naturalmente. Mais uma vez, é importante dizer que sucesso é um lugar que já matou muitas produções artísticas maravilhosas. Não me coloco neste grupo, mesmo sabendo que tenho um trabalho público. O que me importa é ficar velho sem sentir vergonha das coisas que fiz. Sucesso algum vale isso.



Além de não ter apego aos personagens, você também não tem apego à profissão. Você disse que desenhar não é o mais importante na sua vida e que largaria a profissão para fazer o que gosta de fazer de verdade. Desenhar pra você é como lavar louça, ou seja, um trabalho como outro qualquer?
É um trabalho como outro qualquer, que pode trazer tanto prazer quanto se tornar um bom cozinheiro, marceneiro ou médico. O mérito do trabalho não está na renda, mas no prazer que ele lhe proporciona. É triste ver gente que trabalha por trabalhar, que acorda puto para ir ao trabalho. Eu não conseguiria viver assim.

Suspeita do que você realmente gostaria de fazer e que te deixaria feliz?
Sou feliz com o que faço, mas poderia fazer outras coisas. Gosto muito da matemática e ciências exatas em geral, mas não tenho a paciência e a abstração necessárias para a tarefa; é melhor jogar xadrez com os amigos. Também seria facilmente jardineiro, porque adoro plantas e biologia. Tenho cuidado de plantas e estudado sobre o assunto por duas décadas.

O que tem de belo e de ruim na arte no sentido stricto sensu da palavra.
Arte tem algo de perverso, que é o mercado da arte, que muitas vezes serve para lavar dinheiro sujo de corrupção, armas ou diamantes de sangue, por exemplo. Um artista deve estar ciente e questionar a função do seu trabalho. Não é bom que sua produção sirva de alimento para apostadores e bandidos em geral. Porém, isso às vezes foge ao controle do artista, na medida que seu trabalho é valorizado e passa de mão em mão, como qualquer mercadoria.



Das séries que já criou, qual considera sua grande obra e qual ficou aquém do que imaginava?
Não tenho predileção por esta ou aquela série. Sou um ser humano, erro mais do que acerto. Fiz coisas que hoje eu não faria, mas sofrer de arrependimento, nesse ponto, é muita vaidade.

Você tem bom retorno de vendas com seus originais e produtos inspirados em sua arte como camisetas e canecas?
Nada que me enriqueça. A loja paga a escola das minhas duas meninas, e sobra um tanto para o vinho, e só. Os jornais também pagam muito pouco. Se eu quisesse apenas acumular dinheiro, estaria vendendo cerveja ou açúcar, não é?

Muitos dos seus amigos ou colegas de profissão estão aproveitando o bom momento das séries e adaptando-as para a TV, especialmente a paga. Não pensa em oferecer os Malvados para alguma grande empresa?
Já me procuraram outras vezes, mas tenho medo de adaptações. Já fui pago para escrever roteiros, não vejo nada demais nisso, se houver liberdade total para trabalhar. Muitos colegas estão deixando os quadrinhos porque o dinheiro está no audiovisual. É uma pena, acho.



A animação está no seu horizonte?
É muito trabalhoso, envolve muita gente. Se fosse o caso, teria que ser feita com gente muito boa da área. Mas, como disse, tenho meus receios.

Você está fazendo um documentário a respeito de pessoas uniformizadas. Como surgiu essa ideia e em que estágio está este processo?
Já foi feito. É um curta, uma experimentação de linguagem. Tenho vontade de fazer trabalhos em cinema, principalmente documentários. Mas é trabalhoso e custoso, além de envolver muita burocracia. Com quadrinhos, nada disso acontece.

Como você se define?
Um cara que aprende fazendo e errando. Aquilo que costumam chamar de autodidata.



Quadrinho se faz por amor ou por dinheiro?
Pode ser feito por dinheiro, mas sempre com amor.

Tem muita gente boa fazendo quadrinho por aí?
Muita gente. Todo dia descubro alguém novo. Há meninas e meninos fazendo bons quadrinhos, o que me dá grande alegria.

O que é mais difícil, desenhar ou encontrar a linguagem para o desenho?
O desenho é natural, está em todos nós desde sempre. A prova disso é que todas as crianças do mundo gostam de desenhar (caso análogo ao da música). É uma pena que o sistema educacional nos retire este instrumento de saber e conforto tão cedo. Desenhar é uma maneira de organizar e limpar o inconsciente, como fazem os sonhos. Recomendo para todos o caderno e o violão. Fica mais fácil suportar a vida.

ENTREVISTA COM ANDRÉ DAHMER REALIZADA POR RAFAEL SPACA E PUBLICA NO SITE DA REVISTA BRAVO:
https://medium.com/revista-bravo/arte-n%C3%A3o-serve-para-dar-status-92b5002a9dc3

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