PERGUNTAS DE AMIGOS, QUADRINHISTAS E LEITORES
Beralto
Qual a sua visão sobre a quadrinização de obras literárias e qual o maior desafio presente neste tipo de adaptação, segundo sua experiência?
Bira Dantas: Foi de extrema importância no desenvolvimento de nossos profissionais, Beralto. Tivemos vários tipos de HQs. No início, as adaptações da Ebal e La Selva preservavam o texto original, mas mantinham uma narrativa visual bem “careta”. No anterior, “As aventuras de Nhô Quim”, Agostini produziu páginas incríveis, com diagramações arrojadas e muita ação. Na fase seguinte, com “O Guarani”, de Acquarone e Messias de Mello, as experiências continuaram sendo quadrinhísticas. Logo depois, perderam essa qualidade e passaram a ser meramente ilustrativas, como foi a “História do Brasil em Quadrinhos”, de Ivan Wasth Rodrigues (desenhos de rostos e batalhas, como fotos posadas debaixo de recordatórios, que explicavam o que estava acontecendo) e as adaptações literárias da época. Mas aí vieram os anos 80, e as adaptações passaram a priorizar mais a forma gráfica e tivemos excelentes trabalhos, “Macunaíma” de Luiz A. Aguiar e Guidacci foi uma grata surpresa. Os anos 2000 nos trouxeram as coleções Literatura Brasileira e Internacional em Quadrinhos (com Vilachã, Jô Fevereiro, Ronaldo Antonelli, Seabra, André Diniz, Laudo e eu), mas pelo fato do público alvo ser os estudantes, as edições tinham de ser baratas (meu D. Quixote teve custo final de R$ 23,90), o que exigia que o formato e o número de páginas fossem reduzidos. Marcatti produziu seu grosso e fantástico “A Relíquia”, de Eça de Queiroz, pela Conrad, com toda liberdade de criação e nenhum empecilho editorial. Assim como Spacca, que fez um lindo “Capitães de Areia” para Cia das Letras. A Editora Peirópolis lançou uma série excelente com Guazelli, Caco Gualhardo, Fido Nesti e muitos outros. Finalmente tivemos Eduardo e Walter Vetillo, Luiz Gê, Patati, César Lobo, Márcio de Castro, Fábio Moon e Gabriel Bá em várias edições formidáveis e autorais. O maior desafio é você retratar a obra com a fidelidade necessária, entrar no clima, viver a época, sentir o cheiro, ouvir os barulhos e ver as pessoas como elas foram. Para isso precisa de muita pesquisa, achar referências fotográficas ou pinturas. Procurar na web e em sebos. E, se possível, dividir este processo com o público. Eu detalhei minhas experiências na produção de D. Quixote (solo) e O Ateneu (com Ronaldo Antonelli), nos blogs http://domquixotehq.blogspot.com.br e http://ateneuhq.blogspot.com.br.
Nelson Cabral
E seu passado trabalhando com os gibis dos Trapalhões, como foi? Alguma chance se surgir algo novo? Embora brasileiro, sua obra é conhecida internacionalmente. Comente conosco como os estrangeiros veem o nosso humor gráfico. Fale sobre como foi trabalhar nessa homenagem a Jack Kirby!
Bira Dantas: Foi uma experiência única. Eu era um cara de 17 anos, doido para trabalhar com Quadrinhos, só tinha desenhado super-heróis até então. Depois de um breve estágio no estúdio Ely Barbosa (acompanhando a produção de roteiros, desenho, arte-final, letreiramento, guia de cores pintados com ecoline e pintura de capas com guache), virei assistente de um Mestre como Eduardo Vetillo, um artista completo que dominava o lápis, o bico de pena, a pintura em guache, ecoline, os quadrinhos, as ilustrações, desenho acadêmico e o cartunesco. O Rafael Spaca está lançando um livro sobre os Gibis dos Trapalhões, mas acho difícil sair algo novo. A última tentativa foi do Franco de Rosa, no estilo Mangá. Uma vez os estrangeiros perguntaram qual era o estilo do Quadrinho brasileiro. Eu lhes devolvi a pergunta, ao que responderam: “Parece com BD franco-belga! ” Disse que parecia com muita coisa: com a charge política de A Careta, com o underground estadunidense, o fumetti italiano, o mangá japonês, a linha-fina franco-belga (com seus vários estilos de Moebius, Tintin a Asterix), o pesado leste europeu, o manwha coreano… e que parecia inclusive com Angelo Agostini, um dos primeiros quadrinhistas do mundo! Adorei fazer o personagem Dum Dum Dugan, para o livro “Os mundos de Jack Kirby” a convite do Edson Diogo e Will Sideralman. Foi uma honra. Sou fã do traço do Kirby desde meus 13 anos, já tenho 54! Pesquisei o traço original do “Rei”, rosto anguloso, queixo quadrado, cara de irlandês, ação dinâmica. Foi uma volta ao passado. O traço foi no nanquim sobre papel, a pintura digital e -pasmem- a retícula do fundo eu pintei ponto por ponto. Salvei uma retícula na web, dupliquei lado a lado e pintei na unha no photoshop. Eu sei, um ou dois comandos teriam feito todo o trabalho, mas não teria a mesma graça, me diverti por duas horas a fio (hehehehe).
Berzé
Bira, você nunca trabalhou para a grande imprensa, acho. É verdade? Foi uma escolha?
Bira Dantas: É quase verdade. Eu cobri férias do Novaes na Folha da Tarde, em 1986 ou 87. Eles eram bem liberais, nunca tive uma charge reprovada. Mas quem fazia a charge editorial era o Nicolielo, que discutia a pauta do dia com os editores, sentava e desenhava 4 ou 5 charges na hora. Eu fazia charges para ilustrar matérias de política. O Franco de Rosa fazia ilustras para os outros cadernos e escrevia uma página sobre Quadrinhos, semanal. Que equipe! O fato é que o trabalho na Imprensa Sindical me propiciou chargear temas que me interessavam e não interessavam à grande imprensa: os trabalhadores. Tem uma tese de Ciências Sociais que diz que só vira objeto de estudo e notícia o que é globalizado. O resto é periférico e ignorado. Ou seja, se você não for de um grupo forte de manipulação política e social, você é descartado: sindicatos operários, associações de estudantes, lavradores, MST, movimentos populares, CUT, negros, mulheres, gays, lésbicas… tudo descartado, carta fora do baralho. E eu pude fazer charges exatamente para estes setores deserdados. Por isso, minha visão política foi sendo forjada nesta luta diária. Isso me criou um problema. Meu foco era este. Eu não me interessava por fazer charges sobre as novas descobertas da ciência ou o novo projeto dos países ricos, para uma futura comunidade europeia. Eu queria saber da África, da Latino-américa, do Leste-europeu, do Sudeste asiático. Mesmo quando fiz charges para o jornal Retrato do Brasil, em 1986, apesar de ser o último jornal “alternativo”, o enfoque era dado por Raimundo Pereira, com uma visão mais ampla do que uma imprensa classista teria. E no campo de apoios, no conselho editorial, o jornal tinha de Ulisses Guimarães, Severo Gomes, Montoro, Quércia, a Raymundo Faoro, Lula, Paulo Freire. Assim, as charges não tinham o “punch” sindical. Eram mais amenas, sem balões. E eu querendo dar nome aos bois, denunciar, desmascarar. Saí do jornal.
Eu queria a luta sindical, o suor e as lágrimas do povão. Fiquei sossegado até 1988, quando num belo começo de noite o Spacca me liga e diz que era dia do Glauco, que não tinha aparecido, ele não tinha como cobrir o buraco e me indicou fazer a charge da Folha de São Paulo. Topei. Me ligaram do jornal, passaram a pauta, discutimos a ideia (o tema era Sarney) e mandaram um motoboy pegar a arte (não existia nem fax neste tempo). Dia seguinte meu irmão traz a Folha para eu ver e estava lá… a charge do Glauco! Me ligaram para combinar de entregar o cheque e dizer que o Glauco apareceu bem tarde e eles resolveram priorizar o titular do espaço. Acho que foi uma dádiva. Me dediquei a fazer as charges que eu sempre tive vontade, com a minha visão, para os sindicatos. O engraçado é que na Ocupação Glauco no Itaú Cultural, no depoimento do Angeli ele conta que o Glauco era muito desligado, ia pra festas na hora de ir trabalhar e eles sempre estavam prontos para improvisar, quando ele faltava. Certo dia, já quase madrugada (hora do fechamento), a segurança avisa que um cara totalmente bêbado fazia questão de subir até à redação. Era o Glauco. Os editores deixaram ele sentar na prancheta, fazer a charge e voltar para a festa. Será que foi no meu dia? De qualquer forma, as décadas posteriores me mostraram que eu estava onde sempre quis estar: fazendo humor sindical, sem o cabresto do dono do jornal. No movimento sindical quem segura o meu cabresto sou eu mesmo.
Calazans
Bira, comenta a diferença de charge sindical e de jornal aberto. Bira, fala como tem sido dirigir a AQC com WAZ desde 1986, faz um balanço do período!
Bira Dantas: Amigo Calazans, a charge sindical me dá uma liberdade que eu não teria trabalhando em um jornal da grande imprensa. Eu falei da minha experiência na Folha da Tarde durante o mês que cobri férias do Novaes. Acho que se eu tivesse coberto férias do Nicolielo (o chargista editorial, colunista do jornal) talvez não pudesse explorar os temas de minha predileção, até porque as charges eram feitas em cima da pauta do dia. Não adiantaria eu levar um assunto da Chechênia ou a morte do ator que fazia Capitão 7, se não estivesse na pauta. Quanto à Associação dos Quadrinhistas e Caricaturistas de SP (fizemos parte da mesma diretoria em tempos de sonhos idílicos), eu divido em duas fases. A inicial, em 1984, no Sindicato dos Jornalistas SP (a diretoria era composta por Gualberto, Jal, Franco de Rosa, Maringoni, Laerte, Paulo Caruso, Worney de Almeida, Eduardo Vetillo, Jayme Cortez, Conceição Cahú), e em 1986, quando Gualberto montou a chapa de oposição com Spacca, Marcatti, Guida, Mikio, Floreal, Mastrotti, Calazans e eu. Isso acabou em 1988, quando mudei pra Campinas… A atual, de 2005 para cá. Em 1988, Gual e Jal criaram o Troféu HQmix, muita gente saiu da AQC (inclusive eu, que mudei de cidade) e o Worney carregou o prêmio Angelo Agostini praticamente sozinho. WAZ (como era conhecido nos tempos do Zine Quadrix), fazia a cédula de votação, enviava para quadrinhistas e fãs no Brasil todo, distribuía nas lojas de Quadrinhos, recolhia os votos, fazia a apuração, organizava a festa (colocando dinheiro do bolso), convidava debatedores, apresentadores de filmes e animações e apresentava a premiação. Ele era o típico jogador de futebol que sofria a falta, batia a falta, fazia o meio de campo, atacava e chutava a gol. Ou seja, salvo a ajuda dos filhos e de alguns colegas que dividiam as despesas, como o cartunista Marcio Baraldi, Worney estava sozinho no deserto sem entregar os pontos. Mas a bandeira de manter o Troféu AA todo ano, ele nunca largou, bem como manter a votação aberta, livre e democrática (mas ainda com votos em papel). Em 2005 o AA aconteceu no FestComix no prédio da Gazeta, eu e o Baraldi fomos votados como melhores cartunistas, foi nesta época que voltei a ajudar na promoção do evento e participar mais efetivamente da AQC, ajudava a promover a votação nas listas de cartunistas no Orkut e grupos de internet. Em 2007 a premiação aconteceu no Senac Lapa, em 2008 no Senac Scipião, nestes eventos a presença do público era pequena, mas estava começando a crescer. Em 2010 (quando inauguramos o Blog e a votação por e-mail) e 2011 o evento foi sediado no Instituto Cervantes. Aí tivemos o reforço gigantesco de Alexandre Silva e Marcos Venceslau. Estes dois trouxeram um senso de organização e novas ideias na formatação do Troféu, foi neste ano que o Worney abriu mão de organizar e apresentar o prêmio. Ele queria se dedicar apenas às edições impressas da AQC, como a revista Picles (Presidenta Dilma e Fim do Mundo), fanzine O Sótão e algumas exposições como no Dia da Mulher e Dia das Mães. Em 2012, fomos para o Memorial da América Latina, onde estamos até hoje. E depois do Marcos Venceslau e Alexandre Silva, tivemos o reforço do Nivaldo Wesley, Álvaro Costa, Gazy Andraus, Eduardo Vetillo e Paulo Batista. E o Worney ficou mais tranquilo para chegar lá e curtir o evento, lançando suas publicações. Mas ouvi muitas críticas neste período: que a AQC aceitava campanhas de internet, tinha um sistema de votação falho, aceitava votos de qualquer um, não premiava os “melhores” da HQ nacional. O que eu sempre argumentei: a nossa votação é aberta, ampla e democrática. Se tem uma forma melhor de se fazer um prêmio, que façam outro prêmio. É saudável. O HQmix tem um corpo de jurados da área que escolhe os premiados. O Prêmio Bigorna era decidido apenas pelos organizadores. A Academia Brasileira de HQ faz a votação on-line no Blog. Antes fazíamos listas gigantes de lançamentos, mas sempre faltava alguém que reclamava. Achamos que o melhor era publicar os lançamentos que nos enviavam e deixar o eleitor pesquisar e escolher livremente seus votos. A organização da Festa do Dia do Quadrinho Nacional tem se esmerado em melhorar e propiciar um belo encontro entre profissionais e fãs, grandes lançamentos (como a mega série SketchBook Custom e Tributo a Rodolfo Zalla da Criativo e AQC), exposições de HQs do mundo todo e ótimos debates. E nos últimos anos o Troféu AA voltou a ter seu valor reconhecido.
Gazy Andraus
Bira: eu gostaria de saber mais sobre sua participação nos gibis dos Trapalhões (quando vocês criavam as HQs e a TV Globo copiava as piadas sem pagar direitos autorais) e também gostaria de saber quantos países você visitou levando seus portofólioszines! Abraços.
Bira Dantas: Oi Gazy! Pois é… quando o pessoal viu que o programa de TV estava copiando os roteiros dos gibis, ligaram lá para definir um preço por cada piada copiada, o pessoal parou no ato. Eu imagino que eles pegavam o gibi na banca e corriam para adaptar para TV. Essa fase dos Trapalhões foi um contrato entre os mestres Edmundo Rodrigues (editor-mor da Bloch) e o Ely Barbosa (que já vinha produzindo o gibi Festival Hanna-Barbera pra RGE e depois produziria Fofura, Patrícia e O Gordo pra Abril). Este estúdio me fez acreditar que era possível viver de Quadrinhos. Como citei acima, cruzar. Sampa todos os dias, de leste a oeste, do Tatuapé à Lapa, para ser o assistente de um super desenhista como o Vetillo era algo formidável. Poder trabalhar em cima de seu desenho tão dinâmico e que me lembrava tanto Al Capp (Ferdinando Buscapé) foi preponderante para definir meu estilo cartunesco. Ter acesso a seus livros de arte e quadrinhos, de Frazetta a Remington, foi algo que mudou minha vida. Na minha coluna no site Bigorna eu detalhei um pouco desta época: http://www.bigorna.net/index.php?secao=birazine&id=1173761595. O Birazine #01 (lançado na Coréia do Sul em 2005) e o #02 (lançado na Argélia em 2014) serviram como portfólios fáceis de carregar e manipular. Imagine que, exceto os organizadores, ninguém nunca tinha ouvido falar de mim ou visto meu trabalho. Nos dois casos, os zines foram distribuídos gratuitamente à população local. Desde que fui à Coréia do Sul, já levei meu Birazine (e dezenas de outros Quadrinhos brasileiros da Devir, Quarto Mundo e independentes) à Inglaterra, França, Bélgica, Holanda, Escócia, Itália, Portugal, Uruguai, Argentina, Argélia e está em Bibliotecas, Museus e Gibiterias.
Nelson Cabral
No que tange aos profissionais Brasileiros, como era visto o trabalho de chargista no começo de sua carreira e como é visto hoje pelos estrangeiros?
O que mudou na percepção deles sobre nós?
Bira Dantas: Nelson, no Brasil o chargista tinha trabalho assegurado nas principais publicações do país. Infelizmente, estes espaços têm sido reduzidos, talvez porque sejamos considerados supérfluos. Vários jornais reduziram o espaço de charge, ilustração, caricatura e tiras. No exterior eu tenho visto o contrário. Mesmo em Museus onde os Quadrinhos são reconhecidos como arte, a charge ou cartum (como eles preferem chamar), é chamada de grande arte. Talvez porque os cartuns tenham tido um papel tão importante ao reportar fatos históricos como a primeira e segunda guerras, invasão do Iraque, primavera árabe, mudanças nos EUA e Brexit. Os cartuns editoriais são vistos com uma admiração fora do comum. Isto a gente vê no Museu do Cartum de Londres: as salas do térreo com as principais exposições são reservadas ao Cartum editorial, o andar de cima, aos Quadrinhos. Os livros do notório cartunista britânico Giles tinham prefácio do príncipe Charles! Já a visão que eles têm do Brasil mudou radicalmente desde o advento Lula. Mesmo com a desaprovação de muita gente no Brasil, Lula foi um Pop Star. Não foi à toa que Obama o chamou de “o cara”, Bono Vox, Lenny Kravitz e Sting quiseram conhecê-lo, Cage the Elephant puxou “olê olê olê olá. Lula, Lula” no Lollapalooza e Metallica falou bem dele no palco. Antes, o Brasil era um grande desconhecido, cuja capital era Buenos Aires. Tínhamos um presidente que falava 4 línguas, viajava o mundo todo e o Brasil era apenas o lugar do samba, praia e carnaval. O país teve um upgrade, estrangeiros queriam mudar para cá para trabalhar. Isso tudo está sendo destruído pouco a pouco. Não falo de graus de investimentos e os urubus do sistema financeiro internacional. Falo do noticiário. Falo das pessoas. O Brasil passou a fazer diferença. Sinto que o fato de ser brasileiro, me angariou simpatia por onde passei. Na Coréia do Sul me levaram às principais editoras e jornais, fui recebido pelo dono do maior jornal de Seul. Na Bélgica, o diretor do CBBD (Museu do Tintin), veio me conhecer, e na Argélia (onde o Brasil foi país homenageado em 2015), eu fui recebido pelo embaixador e era cumprimentado pelos populares nas ruas estreitas do mercado central de Casbah. Não por ser eu, eles não me conheciam, por eu ser brasileiro.
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