Entrevista com Mário Cau
Nome, idade, local de nascimento.
Mario Vitor Gouveia Cau (se necessário, Mario Cau é o artístico). Nasci em Campinas em 1984.
Onde reside hoje?
Moro em Campinas, com minha esposa. Cresci em Pedreira, interior de São Paulo, e me mudei pra Campinas aos 18.
Como começou a desenhar e o que curtia?
Desenho desde muito novo, uns 2 ou 3 anos. Simplesmente desenhava, como toda criança. Continuei desenhando até hoje. O que mais me influenciava quando comecei eram desenhos animados da Disney e gibis da Turma da Mônica.
Quais foram as suas influências? Algum artista em especial?
Ah, influências são muitas e, ao longo dos anos, elas vão se renovando. Algumas ficam bastante tampo, haha. Eu já tive Jim Lee, Joe Madureira e Bryan Hitch como maiores influências, mas hoje não. Atualmente gosto de consultar David Mack, Cameron Stewart, Jeff Smith, Craig Thompson, Fabio Moon, Gabriel Bá, tem tantos... E, sempre, o eterno Will Eisner.
Qual o seu gênero preferido?
Gosto de tudo que tiver uma boa história. Drama, cotidiano, fantasia, biografia. Gosto até de super-heróis, desde que, como falei, seja algo bem escrito e com boas ideias.
Além de desenhista/roteirista, tem alguma outra profissão?
Sou professor. Dou aulas em Campinas, na Pandora Escola de Artes.
Também dou workshops, oficinas, palestras.
Atendo clientes como ilustrador freelancer em publicidade, editorial, didático...
Sua arte é um hobby ou uma profissão?
Profissão. Sou muito abençoado por ter tido profissões ligadas a arte desde o início. Sou formado em Artes Visuais e nunca trabalhei com algo que não envolvesse isso de alguma forma.
Algum fato inusitado marcou sua carreira?
Não consigo lembrar de nada muito inusitado. Desde que comecei a me enturmar com os autores e o mercado, tenho marcado presença em eventos, publicando muito e sempre conheci muita gente bacana, entre editores, leitores, autores. São várias histórias divertidas. Participei de muita coisa importante, e acho que é resultado de postura, dedicação, qualidade do trabalho e networking.
Como vê o mercado de HQs no Brasil?
Bom, podia ser muito melhor, né? É uma discussão enorme, e acho que eu não tenho tanto conhecimento para definir tudo. Eu acho que é uma questão de contexto, de comparações: está bom, claro, comparado a outras épocas. Mas ainda temos enxurradas de títulos em bancas e livrarias vindos de mercado exterior, onde nem tudo é bom; e muita, mas muita mesmo, produção independente e poreditoras, autorais, de qualidade, que não chega longe com os leitores.
Somos um povo que lê ridiculamente pouco. Que tem grandes problemas nos campos da economia, educação, saúde, etc. Sim, também é sobre política. Como esperar que o povo que tem uma educação tão ruim se torne leitor, saiba discernir e debater...? As pessoas deveriam ler muito mais. HQ autoral deveria chegar em muito mais lugares. Autores deveriam poder viver de suas obras e derivados. Estamos em evolução constante, com eventos, editoras, autores, leitores... Falta, às vezes, profissionalismo, às vezes chances, oportunidades, financiamento, procura do público..., mas ainda tem muito chão pra dizermos que é um mercado sólido e que se sustenta.
Que tipo de incentivo o artista necessita para vencer?
Depende o que você quer dizer com “vencer”. Acredito que, para um artista, o maior incentivo é simplesmente produzir, se expressar, se comunicar. Se você faz quadrinhos, você está contando histórias e isso precisa conseguir cumprir um ciclo, que é chegar ao leitor e aí, ter feedback dele. Cada trabalho concluído é uma vitória, pensando em nosso mercado.
Agora se “vencer” é ter sucesso financeiro, bom, quadrinhos não trarão isso. Pelo menos não rápido. Por isso a grande maioria dos autores de HQ têm outros trabalhos, e são heróis por conseguirem produzir quadrinhos nessa conjuntura.
Tem que ter paixão, dedicação, estudo, disciplina, pesquisa. Nada vem fácil, jovens.
O que a arte pode fazer como transformação na vida das pessoas?
A arte, em geral, abre as portas para a expressão e autoconhecimento. Tudo que um artista quiser falar, ele pode. Existe espaço para isso. Mas geralmente, tem um caminho considerável para se tornar tecnicamente bom naquilo que se faz, o que pode frustrar as pessoas. A gente vê grandes artistas e seus trabalhos magistrais (em qualquer estilo, linguagem, etc.) e não costuma ver o tempo de dedicação e estudo. Arte é algo maravilhoso e até transcendental, mas pode ser só entretenimento. A questão é atingir o ponto em que o que você produz é nivelado com o que você espera, sem frustração. Arte, apesar de ser expressão, não é para ser só sofrimento e frustração. É para fazer bem a quem faz.
Tem admiração por algum artista em especial?
Admiro muito quem se dedica ao que ama e faz dar certo. E, também, a quem acaba, com seu trabalho, criando coisas novas e rompendo barreiras. Admiro quando a pessoa é humilde e acessível.
Posso citar David Mack, Neil Gaiman, Eisner, Greg Tochini, o Rei Jack Kirby..., mas tem muita gente incrível por aí. Seria injusto esquecer alguém importante.
Quais as parcerias que realizou durante sua trajetória?
Minha carreira como quadrinista começou quando entrei na Front, que era uma antologia temática produzida por vários autores, num sistema muito bacana. Depois, entrei para o Quarto Mundo, que foi o maior e mais importante coletivo de Quadrinhos dos últimos anos. Também participo, até hoje, do Petisco, que começou como um site para publicação de webcomics, onde Terapia é publicada.
Nesse tempo, fiz muitas parcerias, com destaque para Rob Gordon, Marina Kurcis, Daniel Esteves, Will, Cadu Simões, Sergio Chaves, Estevão Ribeiro, Lillo Parra, Caio Yo, Lucas Oda, Ana Recalde, Carla Rodrigues... Como roteirista, minha única experiência escrevendo para outro artista foi com o Pedro Serpa.
Qual o seu trabalho que mais marcou?
A série Pieces, que foi onde começou a minha experiência autoral. Dom Casmurro, meu primeiro projeto de fôlego e que nos trouxe dois Prêmios Jabuti. Terapia, projeto mais longo e mais experimental.
Qual o impacto que espera que seus personagens causem nas pessoas?
Como as minhas HQs geralmente são sobre pessoas vivendo a vida cotidiana e lidando com suas questões emocionais, seus traumas, seus sonhos e paixões, espero que os leitores se identifiquem, reflitam, sintam. Conversando com vários leitores, fica evidente o quanto a gente consegue se comunicar e o quanto as histórias reverberam neles. Fico muito feliz e realizado com isso!
Alguma gratidão a alguém? Alguma mágoa?
Minha gratidão é imensa a todos que de alguma forma me ajudaram a chegar onde estou. Meus pais (a família toda, na verdade), que desde sempre me apoiaram. Meus professores de desenho, Paulo Branco e Dag Lemos que, cada um do seu jeito, me lapidaram de um moleque empolgado a um desenhista mais consciente. O pessoal dos grupos dos quais participei, mais em especial os que estão comigo até hoje, um tipo de conselho editorial do Petisco (Daniel, Will e Cadu). E minha esposa Monica, porque sem o apoio dela, eu não faria um terço do que faço.
Mágoa nenhuma. Não gosto de guardar mágoa, e espero que não tenha ninguém por aí que guarde mágoa de mim.
Tem algum projeto futuro?
Meus próximos trabalhos são o Volume 2 de Terapia (que vai ser concluído ainda no primeiro semestre no site petisco.org/terapia e depois virar livro); e de Monstruário. Depois, não sei. Nos últimos anos estive sempre envolvido em muita coisa, lidando com prazos apertados. Em 2018, quero concluir tudo com o que estou envolvido; e fazer as coisas com calma. Quem sabe, começar um novo roteiro para um projeto solo.
O que deixaria para seus leitores?
Deixar...? Acho que o que todos nós deixamos são memórias e histórias. Se, quando eu partir desse plano, minhas histórias, aulas, palestras e ideias continuarem de alguma forma fazendo sentido e inspirando as pessoas, considero uma missão muito bem cumprida.
O que o inspira na hora de criar?
As pessoas e seus universos internos. Os pequenos momentos da vida comum que são cheios de significado e poética. Gosto de, mesmo em histórias que envolvem monstros, heróis ou fantasia, entender quem são os personagens e suas motivações. Gosto de escrever sobre pessoas, mas não histórias vazias e sem profundidade.
Qual personagem seu é o favorito?
Dos meus personagens? Bom, eu sempre trabalhei com histórias que não têm personagens fixos e eles nem têm nome. É uma das coisas que abordo em meus trabalhos. Dos que são, de fato, personagens com nome, ou frequentes, acho que seria o Garoto de Terapia. Ele me trouxe muita coisa boa, muita evolução como autor e ser humano.
Nos conte a respeito de “Monstruário”, que ganhou o Ângelo Agostini, é um trabalho autoral? Você mesmo escreveu e desenhou?
É autoral, mas o roteiro não é meu. A ideia nasceu do Lucas Oda, que assina o roteiro. Fizemos várias reuniões para debater os temas e a estrutura da história. Eu desenhei todo o livro e cuidei da concepção visual dos personagens e monstros. As cores são do Danilo Freitas.
É um drama, suspense, thriller. Tem monstros, mas também não tem. É sobre a burocratização do medo: um mundo igual ao nosso, mas onde as crianças, com 7 anos, precisam tirar seus documentos e entre eles há o registro de monstro. A criança escolhe um monstro (que representa seu maior medo e a acompanha por toda a vida). A trama tem seu início quando a Lucia, nossa personagem, descobre uma antiga ficha sem monstro – ou seja, sem medo. E decide investigar isso.
É um trabalho que haverá continuidade?
Sim, o Volume 2 sairá ainda em 2018 e conclui a história.
Sobre o que fala a maioria de suas HQs? Algum outro personagem seu que gostaria de falar sobre?
Costumo dizer que minhas HQs são, na maioria, sobre pessoas comuns tentando encontrar seu lugar no mundo. É sobre inadequação, saudade, distância, silêncio, amor, medo, sonhos. Gosto de explorar o psicológico dos personagens em um contexto urbano, pé no chão. As pessoas vivem na maioria no automático, sentimentos e autoconhecimento são subestimados, geralmente colocados como coisas de pessoas sensíveis demais ou sei lá o quê. O que acho é que se todo mundo fizesse uma autoanálise, se conhecesse e tentasse entender, respeitar e conviver em paz com os outros, o mundo seria bem mais tranquilo.
Como classificaria o seu traço?
Olha, sinceramente, como professor entendi que não existe necessidade de rotular traços ou estilos. O que cada um desenvolve é uma linguagem cheia de recursos, técnicas e truques que façam sentido e funcionem para ele. Por exemplo, o que chamamos de “mangá” é qualquer coisa que tem uma estética oriental no traço ou na narrativa..., mas na verdade, tudo que é feito em quadrinhos no Japão é mangá. Independente do traço: e são infinitos estilos dentro do mangá. Então, o termo só diz respeito a uma questão geográfica (ou, no máximo, algo muito inspirada nessa estética, mas que seja feita fora do Japão). A mesma coisa serve pra “comics” ou “fumetti”. É o nome de um tipo de HQ produzido num determinado lugar, mas que não tem – nem pode ter – uma limitação estética por ser daquele lugar ou temática.
Eu tenho influência de muita coisa, de mangá a quadrinho de super-heróis, cartum a artes visuais clássicas. É uma colcha de retalhos imensa. É assim que tem que ser, senão o artista vira algo limitado pelo próprio rótulo.
Prefere desenhar preto e branco ou colorido? Por quê?
Preto e branco. Existe uma exigência muito técnica, desafiadora, em construir páginas (ou mesmo ilustrações) que funcionem em PB. Além disso, tem uma carga dramática muito especial. Quando comecei a produzir minhas HQs, o PB era tanto uma questão financeira (é mais barato para imprimir), mas principalmente por um tipo de tendência para histórias do estilo que eu mais costumo produzir.
Por outro lado, quando posso contar com cores, o experimentalismo aumenta muito. As cores trazem mais informações, sensações, analogias... A melhor coisa é pensar o que funciona melhor para cada trabalho e buscar compor as páginas e usar os recursos gráficos disponíveis da melhor forma, para contar a história da melhor forma possível.
Como vê o cenário independente de HQs no Brasil?
Riquíssimo, muito mais interessante e diverso do que encontramos nas bancas. Tem muita gente boa, de nível altíssimo, ainda no cenário independente. Os autores independentes têm, hoje, acesso e condições idênticas às editoras. Então, publicar por editora é uma opção em meio a outras, e não o pote de ouro no fim do arco-íris.
E o fato de que o independente batalha pelo seu projeto, faz acontecer da melhor forma possível, deposita seus esforços de forma honesta, faz com que exista muita paixão e entrega. Muita amizade, muito apoio mútuo. Todos queremos produzir e fazer nossas histórias chegarem aos leitores. E nosso mercado tem espaço para todo mundo, os eventos, a internet e os métodos de financiamento têm ajudado muito nisso.
Ser independente é muito importante como jornada de amadurecimento. Se aprende muito, justamente por precisar encontrar as soluções por conta ou em contato com os colegas autores. Então, quando há possibilidade de ser publicado por editoras, o autor já tem uma formação e vivências muito boas. Em alguns casos, na verdade, a editora nem é interessante, pois a via independente parece mais convidativa pelo que oferece.
Breve currículo e considerações finais.
Pesquisem, conheçam, leiam, mergulhem no quadrinho nacional, no quadrinho autoral (mesmo que não seja brasileiro). Tem muito mais do que você acha na banca, tem muito mais do que supers, TdM e mangá. E tem tanta coisa boa de tantos temas, que acho impossível não encontrar algo que seja feito exatamente para você.
Apoie seus autores favoritos, compre os trabalhos deles, sigam nas redes, curtam e compartilhem. Se você não tem como comprar as coisas, ajude divulgando. Por mais que pareça que temos um mercado grande e sólido, ainda temos muito chão e o apoio mútuo de leitores e autores é muito importante.
Quadrinista e ilustrador, um artista compulsivo e multitarefa: desenha desde sempre e nunca parou. Acredita nas Histórias em Quadrinhos como forma poderosa de comunicação, expressão e arte: são sua linguagem e sua voz. Formou-se licenciado e bacharel em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unicamp (2003-2007). Desde 2004 atua profissionalmente.
Começou sua produção autoral com a série “Pieces”, sobre os pequenos momentos cotidianos, convidando o leitor a uma reflexão sobre os mesmos. Foi membro da Front e do premiado coletivo independente Quarto Mundo. Participou de várias revistas e antologias, no Brasil e no exterior.
Participou dos projetos “MSP+50” e “Mônica(s)”, em homenagem aos cinquentenários de carreira de Maurício de Sousa e da personagem Mônica, respectivamente, e da exposição e livro “Ícones dos Quadrinhos”, no Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte.
Ilustrou a adaptação para HQs de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, com roteiro de Felipe Greco. Obra contemplada com o edital ProAC, e publicada pela Devir, Dom Casmurro venceu o Prêmio Jabuti em 2013; e, também o Troféu HQMIX. Também foi selecionada no PNBE, sendo distribuído para as bibliotecas das escolas públicas de todo o país.
Produz a elogiada série de webcomic “Terapia”, com Rob Gordon e Marina Kurcis, para o portal Petisco. Terapia ganhou o Troféu HQMIX na categoria “Web Quadrinho”, e virou livro após uma bem-sucedida campanha de financiamento coletivo no site Catarse. “Terapia Vol. I” foi publicado pela Editora Novo Século.
Em 2014 participou de antologias como “Feitiço da Vila – a poesia de Noel Rosa em Quadrinhos”, “Cripta do Shogum” e “Um Rock para Caçador”; além de ter lançado a graphic novel “Morphine”. No começo de 2015, recebeu o Troféu Angelo Agostini na categoria "Melhor Desenhista de 2014". Publicou a graphic novel "Quando a noite fecha os olhos”, com roteiro do premiado André Diniz.
Em 2016, ilustrou o livro “Neuro-o-quê?! Neurociência!”, uma HQ para a nova edição de O Gralha, super-herói nacional, uma HQ para a antologia “Cosmogonias” de Cadu Simões e outra para a antologia “Pátria Armada – Visões de Guerra”, publicada pelo InstitutoHQ. Durante a Comic Com Experience, lança “Pieces – Partes do Todo”, novo volume com a retomada de sua série autoral, desta vez publicada pela Marsupial/Jupati Books.
Seus projetos de 2017 incluem o livro “Cris, 30 anos”, que reúne pela primeira vez a webcomic “Cris Corner”, publicada em 2004 em parceria com a ASPE Brasil, e mais 10 contos inéditos ilustrados sobre a vida adulta da personagem-título. Uma nova edição, revista e ampliada com novas ilustrações de “Neuro-o-quê?! Neurociência!” também foi lançada. Durante a CCXP, lança “Monstruário – Volume 1”, seu mais novo trabalho, em parceria com o roteirista Lucas Oda e o colorista Danilo Freitas, obra contemplada pelo edital ProAC em 2016 e publicada pela Marsupial/Jupati Books. No evento também é lançada a edição limitada de “Sketchbook – Pessoas do mundo todo”, seu primeiro artbook.
Como ilustrador, atende diversos clientes particulares, editoras, agências de publicidade e produtoras culturais. É professor de HQ, Ilustração e Desenho Artístico na Pandora Escola de Artes em Campinas - SP, onde reside atualmente.
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