Um artigo escrito pelo amigo e Fanzineiro Edgard Guimarães para uma das edições do Múltiplo do ano de 1992 e que ontem relendo, vi que continua mais atual do que nunca. Nele, Edgard cita uma carta recebida do grande desenhista Márcio Sennes Pereira, editor do fanzine “Zonna! ”, e que vale a pena conferir a seguir. Um recado importante para o universo alternativo e para as chamadas “grandes” editoras e editores nacionais. Também pelo rico texto de Edgard com informações importantes sobre o mercado de quadrinhos no Brasil.
“Numa das cartas que me escreveu, Márcio Sennes Pereira, editor do fanzine “Zonna! ”, fez, sobre os editores no Brasil, um comentário com o qual concordo plenamente, tanto que já abordei o tema em entrevistas que dei a alguns fanzines. Agora vou aproveitar o comentário do Márcio para desenvolver um pouco mais o assunto. ”
Editores no Brasil!
“Eu não sei como esses caras que editam quadrinhos no Brasil podem ser chamados de Editores! O Editor lê tudo, vê tudo, busca talento até numa tribo de índios “ianomâmi” se for preciso! Os nossos (editores) não. Olham só para dentro de suas editoras e para quem está perto deles! Se não houver nenhum grande talento ali, para eles não vai haver em outro lugar. A Editora Globo e a Abril têm coragem de lançar personagens estrangeiros desconhecidos do grande público, mas não têm coragem de fazer o mesmo com personagens desconhecidos brasileiros. ” (Márcio Sennes Pereira)
Num curso de quadrinhos que houve na Oficina “Oswald de Andrade” (na época chamada “Três Rios”), em São Paulo, orientado por Álvaro de Moya, e do qual participei, um editor da Editora Abril, presente num debate sobre a dificuldade que existe para o artista brasileiro publicar, disse que muitas vezes o desenhista não publica porque fica em casa esperando que a editora vá atrás dele. Esta declaração é muito importante por dois motivos. Primeiro, porque, realmente, o quadrinhista brasileiro não deve se acomodar, deve procurar toda e qualquer editora, mostrar seu trabalho a todos cujo ofício seja editar, e enfrentar com coragem todas as recusas. Assim, o conselho deve ser seguido por todos que tenham alguma intenção de trabalhar com quadrinhos no Brasil. Por outro lado, a declaração mostra claramente a mentalidade editorial no país. O editor faz exatamente o que aconselha ao quadrinhista não fazer: se acomodar. O editor fica à espera de que os trabalhos a serem publicados venham até ele. Isso, em tese, pois na realidade, a situação é mais séria. O editor não tem visto nem os talentos que se encontram sob suas vistas. A Editora Abril tem a seu serviço pelo menos dois desenhistas da mais alta qualidade – Watson Portela e Gustavo Machado – e os mantém subutilizados nos quadrinhos infantis. Como querer, então, que o editor saia à cata de talentos?
Como disse, a situação é mais séria. Na área dos quadrinhos, praticamente não existe editores no Brasil. Um simples detalhe dá a ideia de como essa afirmação, aparentemente exagerada, reflete bem a situação da editoria de quadrinhos no Brasil. Basta dar uma olhada nas HQs produzidas no país, quando são publicadas, no espaço onde aparecem os créditos do trabalho. No máximo aparecem os nomes do roteirista, do desenhista e do arte-finalista. Nunca aparece o nome do editor. Mas quem acompanhou as revistas de Super-homem e Batman (entre outros), quando publicadas pela Ebal, se lembra que, nos créditos, o primeiro nome que aparecia era o do editor. A Ebal apenas mantinha os créditos como apareciam originalmente nas revistas americanas. Esse detalhe simples mostra claramente a importância do editor americano em todo o processo que resulta numa revista de quadrinhos como produto final. E mais. A função desse editor americano não é puramente comercial, exige-se dele, além de capacidade gerencial, uma grande dose de competência artística, pois ele influi diretamente nos rumos de uma série de HQ, nos destinos de personagens de quadrinhos. Não vou discutir aqui o lado podre desse editor, onde ele representa o cerceamento da liberdade de roteiristas e desenhistas, ou quando toma decisões puramente comerciais (como as que resultou nas mortes de Flash, Super-moça e Robin, entre outros). Não há sentido em se discutir distribuição de renda na Somália. O fato, aqui posto, é que editar quadrinhos no Brasil, para as grandes editoras, parece ser sinônimo de comprar pronto, com três anos de defasagem, o que é produzido nas grandes americanas, e eventualmente publicar um ou outro europeu. Ainda no sentido de evidenciar a importância do editor americano, cabe um exemplo. Muito se falou sobre o renascimento de Batman depois da obra de Frank Miller, “O Cavaleiro das Trevas”. Não há dúvida de que Miller é um excelente roteirista, dono de uma técnica narrativa invejável e um desenhista moderno e expressivo. O que ninguém falou, no entanto, é que “Cavaleiro das Trevas” só foi possível graças ao talento do editor, Denny O’Neil, desde fim da década de sessenta na ativa e causando pequenas revoluções. E foi O’Neil que, no começo de setenta, como roteirista, criou o Batman moderno que está aí até hoje. E deve ser creditado, em grande parte, aos editores, o mérito pela ressurreição do mercado de quadrinhos de super-herói nos EUA nos últimos dez anos.
No começo de oitenta, Raul Veiga, que acabara de chegar dos Estados Unidos, previa em seu fanzine “O Lobinho” a queda dos gibis de super-heróis, devido ao aumento dos preços das revistas e o congelamento das mesadas da garotada. E não é que as editoras deram a volta por cima, descobrindo o mercado adulto com a sofisticação de seus produtos. Não haja dúvida, portanto, que a presença do editor à frente da produção de quadrinhos, coordenando suas diversas etapas, participando ativamente de sua realização, é o segredo do sucesso da indústria americana de revistas de HQs.
No Brasil, esporadicamente se vê um editor nesses moldes. Um dos que parecem ter consciência de como um editor deve se portar é Octacílio Barros D’Assunção. Entre fim de setenta e início de oitenta, na Editora Vecchi, ele mostrou claramente, em etapas, como editar quadrinhos no Brasil. Publicou alguns almanaques de terror somente com enlatados de custo barato. Encontrando o público, passou a substituir os enlatados por material brasileiro engavetado ou republicando HQs antigas. O passo seguinte foi criar uma equipe de produção de quadrinhos, com talentos inquestionáveis, que manteve regularmente nas bancas uma meia dúzia de títulos, até a falência da editora, que não foi por culpa das revistas ou do editor. Peço desculpas por alguma injustiça que eu esteja cometendo, mas fora esse ou outro caso, o restante da atividade de editor se resume à mera compra de material estrangeiro, ao aproveitamento de modismos (Fofão, Gugu, He-Man), à utilização de personagens consagrados (Disney, Recruta Zero, Lulu e Bolinha), a iniciativas desarticuladas que, apesar de boas intenções, não chegam a consolidar, e, o pior, a picaretagem de muitas pequenas editoras.
Essa afirmação de que praticamente não há editor de quadrinhos no Brasil encontra reforço em dois fatos que narrarei, como exemplo. Em 1974, a Editora Abril lançou a revista “Crás! ”, formato “Veja”, colorida, papel de qualidade, somente com quadrinhos brasileiros. Essa revista durou dois números nesse formato e fórmula. Depois virou revista infantil. Nesses dois primeiros números, “Crás! ” se mostrou uma das melhores revistas já editadas nesse país. Trouxe material variado, praticamente tudo de qualidade, reunindo num mesmo miolo, Jayme Cortez, Lanzellotti, Ivan Rodrigues, Canini, Herrero, Ciça, Perotti, entre tantos. Uma autêntica revista de quadrinhos, precursora de “Inter Quadrinhos” e “Animal”. No mesmo curso mencionado no início desse texto, o editor da Abril presente informou que “Crás! ” não foi cancelada por problemas de vendas. Disse até que ela vendeu bem. O motivo do cancelamento, segundo ele, foi de falta de material para fazer a revista. Ora, parece brincadeira que no Brasil de dezenas de artistas talentosíssimos que não encontram espaço para publicar, uma revista de ótima qualidade tenha acabado porque não os encontrou. Esse é o maior atestado da incompetência do editor, ou, como venho defendendo, da inexistência de uma pessoa que possa receber esse nome de Editor. Mais recentemente outro fato grave aponta nessa direção. Desde meados de 86, depois do Plano Cruzado, o mercado de gibis no Brasil vinha se expandindo, em repetidos “buns”. Nem mesmo o confisco de cruzados novos, feito por Collor em sua entrada de leão, afetou o bolso do leitor de quadrinhos que continuou mantendo o mercado aquecido. Somente o agravamento da recessão, mais para o meio de 91, conseguiu afetar as editoras causando um festival de cancelamentos. Num desses “buns”, as grandes editoras lançaram revistas, minisséries, graphic novels de todo tipo. Parecia que o leitor estava comprando qualquer coisa. E estava mesmo, já que as editoras continuaram. Pois nesse mesmo praticamente nenhum lançamento foi de quadrinho brasileiro. Novamente, ora, se há uma ocasião tão propícia assim para se fincar as bases de uma indústria de quadrinhos brasileiros, aproveitando a avidez do leitor por novidades, para consolidar personagens, revistas e hábitos, e não há uma única revista lançada, agora pergunto, tem sentido usar a palavra Editor no Brasil?
EDGARD GUIMARÃES
EDITOR DO INFORMATIVO
“QUADRINHOS INDEPENDENTES”
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