Perguntas interativas enviadas por leitores e quadrinhistas:
Nos anos 1980, Henry Jaepelt fez um trabalho misturando a narrativa gráfica (HQ) com poesia e temas existenciais. Hoje temos vários autores que trabalham nesta temática. Como você vê a importância do trabalho de Jaepelt para o quadrinho poético-filosófico que se firma nos dias atuais? (Denílson Reis – Fanzine Tchê)
Gazy Andraus: Realmente, Jaepelt é um precursor das HQs poéticas, ainda mais que suas artes têm muito a ver com o intuitivo (e surrealismo) que fora deflagrado antes, tanto na pintura de surrealistas como na escrita automática, o que provavelmente faz parte de seu próprio processo. É mister lembrar que nas décadas de 80 e 90, muitos de nós, como por exemplo, Jaepelt, Calazans, Edgar Franco e eu, criávamos sem sabermos que fazíamos uma “linha”, pois os fanzines, onde todos publicávamos, eram os meios de comunicação entre nós (enviados pelo correio). Então, para os dias atuais, Henry Jaepelt sem dúvida foi um pioneiro (talvez o primeiro), mas não só ele, como os outros que mencionei aqui, além de mais alguns, e por isso, caracterizo a linha poética das HQs atinentes a esses autores todos e não a apenas um. Principalmente porque o “timing” entre um e outro foi muito curto em diferenças de tempo (talvez como o desenvolvimento teórico da seleção Natural de Darwin, que se deu ao mesmo tempo que o de Wallace).
Gazy, como você avalia a atuação de algumas pessoas que procuram, sempre que possível, levar o termo fanzine para dentro da sala de aula e para os eventos de cultura pop, já que hoje, pouco se fala em fanzine nos eventos e sim em independentes? (Denílson Reis – Fanzine Tchê)
Gazy Andraus: Bem, não sei se pouco se fala em fanzines, como você mencionou, Denílson. Talvez em eventos, mas na área de educação e mesmo nas redes sociais como o Facebook, vejo grassar o tema dos fanzines (ou zines). E, claro, muitos estão aprendendo e conhecendo o fanzine como material pedagógico importantíssimo. Desde escolas às faculdades e pós-graduações. Nas escolas temos vários exemplos, como você mesmo, Adriane Almeida que mescla à didática os fanzines e meditação laica, e Ioneide Santos que usa em aulas, ou Renato Donisete (fanzine “Aviso final”) que utiliza-se do fanzine como material de apoio pedagógico, até Beralto (Alberto de Souza), Carlos de Brito Lacerda e Hylio Laganá, professores que empregam os zines como complementos de estímulo e criação aos seus alunos de licenciaturas e escolas, ao Elydio dos Santos Neto, falecido, que criou os Biograficzines para usar na pedagogia da Pós-Graduação. E eu mesmo que me utilizei de zines na minha didática, tanto em cursos livres, como na graduação e pós em docência. Portanto, saibamos que não estamos sós no emprego dos zines como materiais de apoio didático-culturais, e que depende mesmo de nós para ampliar esse reconhecimento.
Os fanzines foram o principal espaço independente para que quadrinhistas do mundo todo publicassem HQs livres das correntes do "mercado". Tivemos uma entressafra, em que a produção de fanzines caiu muito, mas agora o "mercado independente" se mostra como um dos mais fortes no Brasil e no mundo, sendo apontado como Allan Moore como o único meio de se produzir Quadrinhos de qualidade. A que se deve isto? (Bira Dantas)
Gazy Andraus: Lembro que Moore está certo, pois tudo que nasce criativo e vanguardista, não tem rótulo e advém de um ímpeto criativo. Nisso, as HQs, em especial no Brasil dos anos 80 principalmente, e que eram publicadas em fanzines, traziam inovações e conteúdos experimentais incríveis. Na Europa, em especial na França, o fanzinato também permitia explorações e até a criação de um grupo nos anos 90 “L’Association” tido como banda desenhada alternativa. O maior exemplo de como os fanzines e sua liberdade criativa se distanciam da HQ mainstream são os super-heróis: esses, por estarem atrelados a uma indústria e a editores, têm HQs muitas vezes sem originalidade e criatividades forçadas, que atualmente mostram uma decadência sem par! E aí, sim, com o recrudescimento da possibilidade da liberdade criativa, os fanzines despontam-se como alternativa, não só para criação, como na área da educação, sendo uma novidade para o sistema escolar (e até universitário), recrudescendo o potencial dos zines. Lembro também outra vertente atual aos fanzines no Brasil, em que alguns autores os têm como “zines” (retirando o prefixo “fan”), numa modalidade artística de igual valor aos livros de artistas. Ou seja, os fanzines sempre estão em mutação.
De que forma a espiritualidade está presente em seus quadrinhos e na vida, como artista e educador? (Alberto de Souza, Beralto)
Gazy Andraus: Beralto: na minha juventude e no início como autor de HQs, eu me desprendi dos super-heróis e me aproximei das HQs autorais fantásticas, como as de Moebius, Druil-let e Caza enquanto ia lendo livros da área espiritualista e esotérica. Minha educação inicial e mais forte foi com Huberto Rohden e Trigueirinho (e outros como Anne Besant etc.), mas também tive altos arroubos ao ler, na época, quando tinha uns vinte e poucos anos, o Tao! Isso tudo me foi influenciando na realização de HQs que passaram a ser conhecidas como poéticas (e que eu chamo de fantástico-filosóficas como Henrique Torreiro as chamou num de seus catálogos de Exposição de Fanzines em Ourense na Espanha, quando lhe chegou o zine “Irmãos Siameses”, cocriado por mim e Edgar Franco). Assim, todas as leituras que eu fazia, as reflexões advindas delas e de minha experiência na vida, acabavam por serem difundidas homeopática e elipticamente nas minhas HQs poéticas que seriam a contraparte imagética equivalente do que são os HaiKais, ou então, do que são os Koanszen budistas (que explanei e usei de exemplos em meu mestrado: http://tesegazy.blo-gspot.com.br/p/blog-page_3859.html) – frases-enigmas sem respostas racionais, utilizadas pelos monges budistas a que seus pupilos transcendessem a mera mente cartesiana. Essas eram minhas intenções, sem que eu as soubesse, até fazer o mestrado. Lembro também que para deflagrar tais HQs, o estímulo é obtido com a audição de músicas que reverberam em mim, trazendo riscos e traços hachuriados “nervosos”, num ar-roubo criativo que pode ser observado no livro recente da linha Sketchbook-Custom da Ed. Criativo, lançado com meu nome (http://editoracriativo.com.br/produtos/exi-bir/203/gazy-andraus-sketchbook-custom#). E é assim que uno a espiritualidade que busco, quando escuto músicas e leio, deflagrando as imagens com textos que vão sendo “jogadas” intuitivamente no papel, ao deflagrar uma HQ poética, ou fantástico-filosófica das que crio.
Qual o papel da arte dos quadrinhos em um mundo que ca-minha para a sexta extinção massiva de espécies, e no qual nossa espécie também pode extinguir-se? (Edgar Franco, Ci-berpajé)
Gazy Andraus: Acredito que cada um de nós expressa em vida, a arte, sendo arte, como significado original, um modo de ser/agir na vida. Porém, a maioria acaba por não concretizar isso, trocando sua “vida/arte” pelo que o sistema que foi criado, entrega: que é o deus “mamon”, seja para seu bel-prazer (ilusório), seja pela sua subsistência (que o sistema lhe impinge). Assim, os artistas verdadeiros (em quaisquer áreas: há médicos que operam artisticamente, e engenheiros que trabalham com poeticidade) são os esteios que mantêm a vida ainda em ressonância. Foi Carl Gustav Jung quem afirmou que o artista é uma pessoa que traz do psíquico aquilo que se torna existente, materializando o inconsciente coletivo, e trazendo aquilo que os humanos buscam e não sabem. Essa é a função do artista verdadeiro, e como quaisquer outras artes, os quadrinhos-arte desses que percebem isso (como você e Laudo, por exemplo), buscam sustentar o que resta dessa humanidade, trabalhando o criativo e o que deve (ria) possibilitar nossa redenção.
Gazy, você e o Edgar Franco sempre tiveram estilos parecidos de desenho, e hoje em dia, diria que continuam com o mesmo estilo? Como classificaria o seu estilo e qual a principal diferença do estilo do Edgar Franco? (Clodoaldo Cruz)
Gazy Andraus: Realmente, Clodoaldo, no início nossos trabalhos eram sumariamente similares: tanto que eu não o conhecia, e quando vi uma HQ de Franco, muitos anos atrás no Fanzine “Barata” (editado por Calazans), achando-a muito parecida com as minhas, me espantei ao ver o endereço de contato dele ser de Ituiutaba/MG, onde nasci também. Após escrever para ele, encontramo-nos lá nas férias (pois ele estudava Arquitetura em Brasília) e coproduzimos o zine “Irmãos Siameses”, mostrando a semelhança de nossas artes. Atualmente o caminho das HQs dele segue poeticamente, adicionado a um viés de temática mais pertinente aos estudos que ele singrou, como os de tecnologia e interferência ao humano. Sem falar que a produção dele é intensa, tanto nas HQs (seu “Artlectos e Pós-Humanos” se encontra no nº 10 pela Marca de Fantasia - http://marcadefantasia.com/revistas/revistas.htm), como no meio acadêmico. No meu caso, eu produzo bem menos HQs que antes, e ainda me situo pela metodologia de ouvir músicas e “jogar” sequências curtas poéticas que aparecerem com base na intuição (também derivadas de leituras). Assim, a semelhança atual é que ainda estamos na linha de HQ ‘poéticas” e/ou “poético-filosóficas”, mas as dele têm uma linha de contextualização mais atinente ao universo pós-humano técnico que ele criou, e as minhas ainda estão na linha fantástico-filosóficas, sem uma linha própria além dela conquanto ao tema, ou seja, não criei (ainda) um universo.
Como é atualmente sua relação autor-espiritualidade e pessoa-espiritualidade? (Laudo Ferreira Jr.)
Gazy Andraus: Laudo, amigo, minha relação é intrínseca: enquanto ser humano, sinto-me espiritualmente potencializável, mas não ainda realizado (como diria Huberto Rohden). Já fui mais atinente à espiritualidade quando tinha desde meus vinte e tantos anos aos trinta e tantos, mas conforme fui me embrenhando na área da pós-graduação acadêmica com mestrado, e depois com o doutoramento, afastei-me bem mais das leituras espirituais e foquei na racionalidade. Isso compro-vou a minha própria tese tornando-me cobaia de mim mesmo: vi que minha mente foi diminuindo de atuação na espiritualidade e se ampliando na racionalidade do pensamento cartesiano do pesquisador científico. Mas também mantive em meio às pesquisas, vez ou outra, leituras de cientistas e pensadores com um pé na espiritualidade, como Amit Goswami. Ao mesmo tempo, minha produção artística foi diminuindo, e minha canalização foi passando para as escritas acadêmicas. Resumindo: quero voltar a equilibrar-me com mais leituras do espírito, e mais artes das minhas HQs poéticas ao som musical que abriam (e ainda abrem) canais na minha mente para o universo de maneira distinta da racional. E vi que você, Laudo, fez talvez caminho inverso ao meu: suas HQs vieram num processo cronológico, de algo mais – digamos – terreno, para algo mais além, como “Yeshuah” e agora seus “Cadernos de Viagem” com seu alterego psiconauta (este não li ainda, mas está na minha lista de desejos). Assim, apesar de aparentemente eu estar produzindo menos artes e mais racionalismos, minha verve interior continua gritando e demandando pela minha relação pessoa/autoria/espiritualidade! Grato mesmo, por essa pergunta, que me fez redirigir-me a meu âmago!
André Carim (Múltiplo): Obrigado, meu amigo Gazy, pela disposição em responder às minhas questões e as dos leitores e quadrinhistas.
Gazy Andraus: Eu que agradeço: entrevistas são como resultantes num processo criativo/racional, similar ao de se elaborar um zine ou até um biografiazine (lembrando o grande Elydio!): ao redigir as respostas é como se houvesse um estudo interno para ampliar o autoconhecimento. E a cada fase em que sou entrevistado, percebo que as questões e questionamentos mostram que estou sempre diferente, embora o mesmo na essência, percebendo isso durante a elaboração das respostas que pedem uma reflexão sempre mais apurada, como que numa busca da maturidade e espiritualidade!
São Vicente-SP, março de 2017.
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